Era noite, o frio consumia o ambiente, a névoa que jaz neste
lugar permanecia imóvel como em todos os dias. Cidade maldita.
Já fazia um certo tempo que eu não os via nas sombras. Desde
aquele dia em que vi algo sob minha janela, minha mente se tornou ampla e a
compreensão desse mundo veio a mim. Passei anos abaixo dos velhos mausoléus,
das velhas tumbas em meio a florestas e cemitérios. Não somos nada perante
eles. Seres que caminham pela escuridão e trazem o cheiro da morte.
Tal criatura grotesca já fugia de mim fazia alguns dias.
Nosso primeiro encontro fora na soleira de um pequeno monte próximo a cidade,
estranho ver um deles por ali, gostam da metrópole, ainda não entendi bem o
porque mas suspeito ser pela farta quantidade de presas, caça.
Não me tornei o que me tornei por escolha ou acaso, mas me
sinto extremamente responsável pelas vidas das pessoas, meu conhecimento não
pode ser desperdiçado e se aprendi algo é por intermédio divino. No início eu
tentei contar ao mundo o que vi, fui a jornais, repórteres, mas ninguém do meu
tempo tem a coragem de enfiar a cara nas sombras que vos cercam, a fina camada,
a máscara que cobre o mundo dos sombrios permanece, pois o medo é forte demais,
e sua influência é tão grande que não sei esquematizar sua organização, mesmo
após trinta anos.
A cidade é gélida, morta, em tons de cinza durante o dia e um
preto avermelhado durante a noite. Mostra-se orgulhosa entre os montes e vales
deste lado do mundo. Seus altos prédios de advogados e ratos de mesma espécie
se erguem além dos picos montanhosos, a neve cobre o topo desses edifícios.
Nesses altos escritórios, moldados a moda de cem anos atrás, caprichosamente
espelhados nas construções de tempos imemoráveis, encontravam-se o mais alto escalão
das mortas criaturas. Tão velhas quanto o mundo.
Pelas ruas mais baixas se sentia o cheiro podre da doença,
uma cidade decadente, contraste. Ali vagavam mendigos, prostitutas e drogados,
todos leprosos e famintos. Um grande gueto eu diria, aqueles lá de cima não se
importam com o que acontece aqui a muitos anos, centenas deles.
Dentro da floresta vi de relance a face da criatura, não era
bela como as lendas contam, parecia sufocada por algo, a pele era ressecada, estava
apavorada e fugia de algo. Sua trilha me trouxe as portas de um galpão
movimentado, imagino que um clube funcionava por ali durante a noite, não
entrei. Conheço como eles agem e migrar para um local desse calibre não era do
feitio de seres tão nobres. O tom
musical e deprimente que aquele lugar trazia não me agradava de forma alguma,
senti estar sendo observado desde algumas ruas abaixo, e esse sentimento foi a
diferença entre poder ou não contar essa história.
A igreja não enviava mais ninguém para essas áreas, a muito
tempo eles haviam desistido de conter os monstros, me proibiram de caçar as
bestas, mas nada me impede. O tempo que passei sendo enganado por charlatões de
batina já passou, aquela velha e ultrapassada organização já perdeu essa luta a
muitos séculos, mas eu não perdi minha luta ainda, eu morrerei e será um deles
que me tirará a vida, mas não nessa noite, não na podridão dessa metrópole.
Segui o rastro ruas e guetos adentro atrás de minha presa e
algo me espantou. Uma sombra vinha se formando no ângulo entre a intersecção de
duas paredes que formavam um dos guetos, algo distorcido. Aos poucos um rio de
sangue foi se formando ao redor dos meus pés, em cima de mim o corpo de uma
jovem jazia morto, destroçado, preso aos fios sobre a rua. A sombra seguiu seu
caminho e não pude seguir, sem saber em qual tipo de escuridão me metia, engoli
o choro pelo corpo sem vida e em cima de meus 2 metros e um sobretudo longo de
tecido meia boca e botas sujas de lama, eu segui adiante, tremendo de medo em
cada passo. Sim eu não sou imune ao medo, sou apenas um bom homem que teve sua
cabeça bagunçada por eles, e não sou uma besta ancestral com a força de moldar
a carne de quem a vê.
Uma vez em que ouvi o sussurro dentro da tumba, me senti
feliz por ter companhia após tantos meses isolado. Fazia parte do meu
entendimento desse mundo estar ali e ouvir as vozes da velha tumba, ou apenas
parte da minha loucura. Cochichavam sobre o poder do sangue e a metamorfose da
besta. Retirando dia após dia um pouco
mais de conhecimento, passei todo aquele tempo ali, destrancando minha mente e
permitindo que as sombras a tocassem.
Banhado de sangue eu corria atrás do monstro, ferido e desnorteado
aquela besta incontrolável agora fugia e berrava frases de uma língua perdida
nas garras do tempo. Escapava pelas ruelas, quando disparei contra suas costas
nuas, e seu peito atingia o chão. Enquanto eu corria desesperado para matar o
monstro disforme logo ali, ao meu alcance, surgiu a sobra que me acompanhava e
sussurrou palavras de medo e ofensas ancestrais sob meu corpo, que ficou imóvel
perante ao medo. Algo ali era diferente e em todos os meus quase trinta anos de
pesquisa, eu jamais vi um ser tão apavorante e místico, a sombra então se
voltou a mim e proferiu duas palavras.
Quando me fiz consciente, na cama daquele hotel, longe do
gueto e das trevas que perseguia. Tudo me pareceu um nefasto sonho distorcido e
enegrecido, eu me sentia bem e nem mesmo o cadáver mutilado do meu lado na cama
tirou minha paz.
Eu estava livre.