Contos Sombrios

    Me desculpe Selena, mas eu não consigo suportar a dor dessa solidão. A noite é terrível demais, fico feliz de não estar aqui pra testemunhar.
    Eu entendo agora, Selena, todo seu ódio por mim é justificável, eu entendo, neste exato momento minha alma morta se remexe para estar ao seu lado, mas eu sei que nossas almas não irão para o mesmo lugar, eu não mereço, não depois do que eu me tornei. Você tinha toda a razão, eu merecia morrer, eu devia ter te seguido, mas o sangue, a besta, foi tudo forte demais, foi tudo sedutor demais. No meu luto eu não pude chorar  por você Selena, um assassino não deve chorar o sangue de suas vítimas, um monstro não tem o direito de chorar, um monstro toma o sangue de sua vítima até a última gota. Por todos os juramentos sagrados que fizemos, meu dever era protegê-la, mas na falha da minha promessa eu me tornei algo muito pior do que todos os inimigos que enfrentamos juntos, nada na diplomacia do seu mundo poderia ser tão cruel quanto eu sou Selena, nada seria tão perigoso quanto ter um monstro impiedoso em sua intimidade, em sua cama, em seu puro coração. No começo eu me enlouqueci, eu entrei em transe, eu lutei contra essa fera, eu juro que lutei minha amada Selena, eu não queria ter de matar ninguém, mas suas veias saltavam aos meus olhos, eu sentia o sangue pulsar e correr, eu não pude evitar.
    Você parecia tão serena, um olhar tão calmo pairava sobre seu lindo rosto, a pele estava gelada, a vida já estava te deixando, e eu não sentia uma gota de remorso. Seus olhos calmos se transmutaram num misto de ódio e ferocidade, uma força desconhecida, uma vitalidade que eu já não entendo mais,  suas últimas e fortes palavras me amaldiçoaram a viver a vida ao sabor de uma amarga e fria solidão. Acredite em mim Selena, a solidão é uma força aterradora. 
    Depois de alguns séculos, a minha presença já não fazia mais diferença, a besta já dormia em um escuro calabouço que os anos me ajudaram a criar, e eu nunca estive tão imerso na solidão das sombras que esse mundo constrói. Pobres pessoas que não sabem de todo o horror que os cerca. 


-conto inacabado que não pretendo terminar-
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  Era noite, o frio consumia o ambiente, a névoa que jaz neste lugar permanecia imóvel como em todos os dias. Cidade maldita.
  Já fazia um certo tempo que eu não os via nas sombras. Desde aquele dia em que vi algo sob minha janela, minha mente se tornou ampla e a compreensão desse mundo veio a mim. Passei anos abaixo dos velhos mausoléus, das velhas tumbas em meio a florestas e cemitérios. Não somos nada perante eles. Seres que caminham pela escuridão e trazem o cheiro da morte.
  Tal criatura grotesca já fugia de mim fazia alguns dias. Nosso primeiro encontro fora na soleira de um pequeno monte próximo a cidade, estranho ver um deles por ali, gostam da metrópole, ainda não entendi bem o porque mas suspeito ser pela farta quantidade de presas, caça.
  Não me tornei o que me tornei por escolha ou acaso, mas me sinto extremamente responsável pelas vidas das pessoas, meu conhecimento não pode ser desperdiçado e se aprendi algo é por intermédio divino. No início eu tentei contar ao mundo o que vi, fui a jornais, repórteres, mas ninguém do meu tempo tem a coragem de enfiar a cara nas sombras que vos cercam, a fina camada, a máscara que cobre o mundo dos sombrios permanece, pois o medo é forte demais, e sua influência é tão grande que não sei esquematizar sua organização, mesmo após trinta anos.
  A cidade é gélida, morta, em tons de cinza durante o dia e um preto avermelhado durante a noite. Mostra-se orgulhosa entre os montes e vales deste lado do mundo. Seus altos prédios de advogados e ratos de mesma espécie se erguem além dos picos montanhosos, a neve cobre o topo desses edifícios. Nesses altos escritórios, moldados a moda de cem anos atrás, caprichosamente espelhados nas construções de tempos imemoráveis, encontravam-se o mais alto escalão das mortas criaturas. Tão velhas quanto o mundo.
 Pelas ruas mais baixas se sentia o cheiro podre da doença, uma cidade decadente, contraste. Ali vagavam mendigos, prostitutas e drogados, todos leprosos e famintos. Um grande gueto eu diria, aqueles lá de cima não se importam com o que acontece aqui a muitos anos, centenas deles.
  Dentro da floresta vi de relance a face da criatura, não era bela como as lendas contam, parecia sufocada por algo, a pele era ressecada, estava apavorada e fugia de algo. Sua trilha me trouxe as portas de um galpão movimentado, imagino que um clube funcionava por ali durante a noite, não entrei. Conheço como eles agem e migrar para um local desse calibre não era do feitio de seres tão nobres.  O tom musical e deprimente que aquele lugar trazia não me agradava de forma alguma, senti estar sendo observado desde algumas ruas abaixo, e esse sentimento foi a diferença entre poder ou não contar essa história.
  A igreja não enviava mais ninguém para essas áreas, a muito tempo eles haviam desistido de conter os monstros, me proibiram de caçar as bestas, mas nada me impede. O tempo que passei sendo enganado por charlatões de batina já passou, aquela velha e ultrapassada organização já perdeu essa luta a muitos séculos, mas eu não perdi minha luta ainda, eu morrerei e será um deles que me tirará a vida, mas não nessa noite, não na podridão dessa metrópole.
  Segui o rastro ruas e guetos adentro atrás de minha presa e algo me espantou. Uma sombra vinha se formando no ângulo entre a intersecção de duas paredes que formavam um dos guetos, algo distorcido. Aos poucos um rio de sangue foi se formando ao redor dos meus pés, em cima de mim o corpo de uma jovem jazia morto, destroçado, preso aos fios sobre a rua. A sombra seguiu seu caminho e não pude seguir, sem saber em qual tipo de escuridão me metia, engoli o choro pelo corpo sem vida e em cima de meus 2 metros e um sobretudo longo de tecido meia boca e botas sujas de lama, eu segui adiante, tremendo de medo em cada passo. Sim eu não sou imune ao medo, sou apenas um bom homem que teve sua cabeça bagunçada por eles, e não sou uma besta ancestral com a força de moldar a carne de quem a vê.
  Uma vez em que ouvi o sussurro dentro da tumba, me senti feliz por ter companhia após tantos meses isolado. Fazia parte do meu entendimento desse mundo estar ali e ouvir as vozes da velha tumba, ou apenas parte da minha loucura. Cochichavam sobre o poder do sangue e a metamorfose da besta.  Retirando dia após dia um pouco mais de conhecimento, passei todo aquele tempo ali, destrancando minha mente e permitindo que as sombras a tocassem.
  Banhado de sangue eu corria atrás do monstro, ferido e desnorteado aquela besta incontrolável agora fugia e berrava frases de uma língua perdida nas garras do tempo. Escapava pelas ruelas, quando disparei contra suas costas nuas, e seu peito atingia o chão. Enquanto eu corria desesperado para matar o monstro disforme logo ali, ao meu alcance, surgiu a sobra que me acompanhava e sussurrou palavras de medo e ofensas ancestrais sob meu corpo, que ficou imóvel perante ao medo. Algo ali era diferente e em todos os meus quase trinta anos de pesquisa, eu jamais vi um ser tão apavorante e místico, a sombra então se voltou a mim e proferiu duas palavras.
  Quando me fiz consciente, na cama daquele hotel, longe do gueto e das trevas que perseguia. Tudo me pareceu um nefasto sonho distorcido e enegrecido, eu me sentia bem e nem mesmo o cadáver mutilado do meu lado na cama tirou minha paz.

  Eu estava livre. 
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 Talvez essa forma de dizer, escrever e gravar o que sinto já esteja ultrapassada, ou simplesmente ignorada. Não é por isso que deixarei de descrever aqui os fatos que me atormentam desde que coloquei meus pés na noite sem fim.
     Coração partido pode parecer para você algo passageiro, um simples sentimento que vem e que volta, mas para nós que vivemos em plena solidão é algo sem igual. Alguns escolhem não sentir nada e se tornam animais, outros aprendem a controlar suas emoções se entregando aos prazeres  da noite. Eu escolhi o pior caminho. Senti meu coração morto e atrofiado ser arrancado de meu peito.  Falarei de como sentir sem ter ao menos um coração vivo e pulsante. Curioso o que os séculos te trazem.
     Ao inicio de nossas vidas, ou não vidas, somos bombardeados por sentimentos confusos e atrapalhados que nos fazem optar pelo lado monstruoso de nossa natureza, nunca soube de um caso diferente. Os novatos não conhecem o verdadeiro terror do tempo, sentem-se poderosos e felizes por serem eternos, mas a eternidade esmaga qualquer expectativa. Depois de mais de um século vivo, apenas sobra uma carcaça de remorsos, dizem que os seres que transcendem os mil anos se tornam semi-deuses e sua consciência é totalmente destroçada. Vou dizer o que sinto.
     A metrópole por sua figura instigante, onde o que você procura pode ser encontrado, ou estar procurando exatamente por você. Foi numa noite, uma noite de verão, calor abafava o horizonte e deixava o céu limpo com estrelas piscando para imensidão, ela me disse que o amor era pleno e que não importava o que nos detivesse ficaríamos juntos. Nunca esqueci aquele sentimento, aquela junção de desejo, encanto e admiração por um ser tão delicado e com tamanho poder, o pode te trazer luz, de iluminar um pouco esse fundo poço chamado eternidade. Eu transbordava alegria e satisfação ao seu lado, cada encontro, cada noite eram eternas, aquelas poucas horas se tornavam inesquecíveis, mas eu sou um animal, uma besta, um ser perverso. Claro que ela não sabia da minha verdadeira face, a face da noite, a solidão, a triste sina de quem morreu mas não foi pro inferno. Por um deslize deixei que visse por trás da mascara, deixei que percebesse que eu não era algo bom para ela, apesar de tanto esforço para conseguir ser bem a ela, eu falhei, e perdi o controle. Meus dentes entraram em seu pescoço como uma faca em um pote de manteiga, ela não resistiu, consentiu, olhou no mais fundo ponto de meus olhos e enxergou aquele animal que lhe feria, disse com um brilho. Até mais. Se foi, morta. Pânico! Entrei em tamanho frenesi que fui expulso da cidade e enviado as masmorras, preparadas para aqueles que ameaçam o fino véu da mentira que separa o meu mundo, do seu mundo. Abaixo dos suntuosos castelos do velho continente, se encontram aqueles julgados a enfrentar a chama do sol.
     Talvez isso não faça diferença agora, já se foram tantos anos esquecido nesse buraco, os ratos me mantém vivo, não vejo nada, nem ninguém, e apenas o que me restou foi este velho gravador, aqui deixo meu recado aos mortos que vagam pelas cidades e aos vivos que não fazem ideia do vos cerca, jamais deixe que a besta tome conta de você, nunca perca aquilo que te faz acordar, não permita que o que pensa sobre o que é estrague tudo aquilo que quer ser, seja para quem ama, plenamente satisfatório, deixe que tal pessoa te faça melhor, seja melhor para que tal pessoa também seja, vivo ou morto.
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Alguns chamam de benção, eu chamo de maldição. A eternidade é uma besta tão feroz quanto aquela que carregamos dentro de nós. O que nos move também é o que nos impede de nos mover e o que é belo e bom dura tão pouco quanto se pode lembrar, mas o que é feio e retorcido, tão terrível quanto seja possível de se imaginar, esse, é inesquecível.
Nem sempre fui assim, não, não. A noite me fez como sou, nem mesmo o mais antigo dos amaldiçoados conhece a escuridão tão bem quanto eu. Vivendo nos cantos apodrecidos e desprezados de uma metrópole imponente, nada mais digno e merecido por um ser tão asqueroso e indesejável. Quando vivo nunca fui lá tão belo, mas eu tinha a quem amar e ser amado. Seu nome não importa, não faz mais diferença, se passou tanto tempo. O que lhe aconteceu, ou melhor o que eu lhe fiz é algo que jamais poderei esquecer. Dizem que a primeira gota de sangue fica marcada na alma decaída de um de nós.
Era uma noite calma, tranquila, típica noite londrina, caminhávamos pelas ruelas da cidade as gargalhadas, sempre era assim, sorrisos, felicidade. Senti que éramos observados, um imortal sabe como preparar sua caça, o medo é o combustível. Eu vi algo, meus sentidos simplesmente se desligaram, era tão horrível, não sei nem ao menos dizer o que foi, minha compreensão humana até então não foi capaz de assimilar. Vermelho, tudo ficou vermelho. Quando me dei conta, estava deitado em nossa cama, coberto de sangue. Ela estava ao meu lado, sem vida, bem, algumas partes dela estavam ao meu lado, o resto, espalhado pelo quarto. Aquela cena não me incomodou, levantei-me como sempre, troquei minhas roupas e nunca mais coloquei meus pés naquele lugar, era a besta falando, não eu. Por muito tempo continuei agindo por instinto, o horror que causei não ficou desapercebido e fui proibido de viver na cidade por ameaçar o véu que nos esconde do mundo humano.
Passei a viver nos esgotos e nos cantos esquecidos, me alimentando de animais e drogados que infestam essa região podre da cidade. Eu causo problemas, não sou como os outros, aqueles que tem duas presas e são misticamente belos e envolventes. Não mesmo, eu sou um monstro, um monstro disforme de feições chacais, como se pincelado pelo próprio diabo e consumido pelo ódio daquele que me criou. Quem em mim coloca seus olhos, enlouquece. A compreensão humana é muito vaga e reduzida para entender que seres existem nas sombras que tanto temem. Um velho me viu fora de sua janela, em um beco escuro enquanto eu me alimentava de uma jovem meretriz, apenas um relance de meu olhar foi o que deixei que avistasse, dias depois aquele homem era velado em sua casa. Se matou dizendo ter visto o demônio. Quando me alimento, não é belo como nos filmes, e de gracioso nada tem, eu destroço o pescoço da presa . Sem controle a morte é rápida e extremamente dolorosa. A marca do trauma sofrido pelo corpo permanece no olhar. Olhar tal que permanece marcado em minha memória, não tem como fechar os meus olhos sem ver na escuridão do meu consciente, todos aqueles olhos amedrontados me fitando, se perguntando, por quê?

Hoje vago pelas sombras, pelos cantos mais nojentos e merecidos por mim. Vago em uma busca vã por meus iguais. Talvez seja apenas uma procura desenfreada por algo que desejo encontrar e não por algo que esteja ali para ser encontrado. Talvez não exista um criador, talvez eu não seja um amaldiçoado como todos que encontrei. Posso apenas ser, do diabo mais um capataz.
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Acordei em um beco estranho, subúrbio da cidade, lugar nojento, parte da metrópole que não se mostra a pessoas como eu, não durante o dia, não nessas condições. Pedaços de lembranças desconexos se encaixando de forma turva em minha mente, não sabia de onde vim, o que aconteceu, pior sensação possível.
Minha visão embaçada me guia através daquele bairro mal cheiroso, a podridão havia se alocado ali a muito tempo e jamais saiu, o que a metrópole não quer. Saio daquele lugar horrível com uma sensação ruim no peito, a vista da janela do trem me mostra que não acabou.
Pego no sono. Me vejo em um corredor mal iluminado, lugar bizarro, correntes nas paredes, manchas de sangue no piso e uma musica excruciante toca ao fundo. Meus sentidos estão aflorados, o toque parece mágico, sinto fortemente cada nervo do meu corpo, vejo cores nunca antes interpretadas, meus olhos captam uma beleza secreta, mesmo naquele lugar. Uma mão me guia por todo corredor, não vejo quem é, seu toque era quente. Acordo, uma senhora me pergunta se estou bem, respondo que sim e me foco na janela, ainda estamos longe de casa, o subúrbio choca a cada quarteirão, pessoas jogadas na rua, apartamentos abandonados e amarrotados de pessoas vivendo de forma desumana - essa palavra não tem poder por aqui - a esperança abandonou essa gente. Meus olhos não desgrudam da janela. Outro lapso, agora estou deitado em minha cama, ao meu lado está o relógio dizendo que outro dia monótono chegou ao fim, dizendo que mais uma vez minha vida está sendo jogada fora, escancarando na minha cara que eu estava morto por dentro. Viver não é apenas existir. Já me conformei, a vida é essa, eu era parte do plano. Na metrópole todos eram parte do plano. Durmo um mal sono, sou acordado no meio da noite com o homem do telejornal dizendo as mortes do dia, aquilo já não me abalava mais, a metrópole cobra seu preço e alguém tem que pagar, talvez amanhã fosse minha vez, desejava profundamente que esse dia chegasse. Toc Toc, quem é? É a morte! Não, infelizmente não era, mas a terceira batida me instigou a abrir a porta. Um homem sem face me faz perguntas que não entendo, perco o controle do meu corpo.
Enfim a podridão sai de cena e fica longe dos meus olhos. Apesar de tudo ainda tenho um longo dia dentro de um abafado escritório, o trabalho era tão robótico que eu não tinha mais certeza do que fazia ali. Uma jornada de oito horas diárias, que as vezes chegava a marca de quinze ou vinte horas para receber um salário e não passar fome ao fim do mês. Essa era a realidade de quase todos na cidade. Eram concedidos quinze minutos de descanso para os empregados - grande piada - me encosto na sacada do prédio e caio novamente no limbo. Estou ofegante, correndo por ruelas e guetos, meu coração palpita e parece que vai explodir, não sinto nada e um silêncio acalma meus pensamentos, apenas aproveito a sensação. O homem sem face corre ao meu lado, aquela figura macabra não me assusta, as sombras parecem me engolir e era muito confortável estar ali. O homem para e indica que vamos parar. Entramos num velho prédio, andamos por um tempo. Era um galpão abandonado e no centro havia um sofá enorme e uma mulher sentada nele. Nunca vi beleza tão grande em toda minha vida, sua presença era grandiosa, era possível sentir seu olhar penetrando a alma, pegou em minha mão e seu toque era frio. Sem perceber fui ao seu colo. Era frio como suas mãos. Eu não ouvi o que ela disse, apenas senti.
Acordo com o gerente do setor aos berros dizendo baboseiras sobre dormir e ser demitido, dou de ombros e volto ao trabalho, vejo o ódio em seus olhos. Pessoas não gostam de ser ignoradas, principalmente quando estão em uma posição acima. O trabalho segue massacrante, meus olhos fundos hoje estão com mais olheiras do que o normal, me vem a vontade de jogar tudo pro ar, me demitir, começar de novo. Pensei o mesmo ontem, e antes, e antes, e antes...

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Não tem palavras que descrevem a solidão da noite sem fim, não tem sentimentos fortes o suficiente para sobreviver ao terror do tempo.
Do sangue eu vim e ao sangue devo retornar, sempre rodeado de terror e escuridão. A noite me fez assim e assim me entreguei a ela com toda ferocidade de meu interior bestial. Durante os séculos que vivi, mortes cercaram meu caminho. Matar é sobrevivência e por capricho também é o maior prazer que se pode obter dentro deste corpo amaldiçoado, me julgue como quiser você não pode imaginar.
Apenas uma forte marca na existência pode mudar a vida de um amaldiçoado - vida? não vivemos - muitos não conseguem lidar com a solidão e deixam-se entregar ao lado da fera, vivi assim por muitos anos até que a forte cicatriz surgiu em meu caminho.
Seu nome era Elizabeth e incrivelmente ela andava sozinha nas ruas de uma Paris dominada por seres como eu, fato raro, naquele tempo todos sabiam dos perigos que vinham das sombras. Eu pude sentir sua presença impactante e seu cheiro incomparável imediatamente, não resistindo segui pelas ruelas e a surpreendi . Elizabeth era uma jovem inocente e tão pura, capaz de deter todos os meus instintos, seu olhar penetrante percorreu todo meu corpo e me paralisou. Porém sua inocência existiu por poucos segundos e o olhar puro logo se voltou a um olhar tão frio como aquela noite, era uma amaldiçoada, logo eu estava ao seu colo sentindo seu cheiro e não me importando com nada, não me pergunte sobre como cheguei a isso, apenas me lembro de estar ali. Uma calmaria jamais sentida tomou conta de mim e por poucos segundos me senti diferente, talvez vivo, mas a morte sempre acompanhando meu caminho me surpreendeu com as presas de Elizabeth rasgando minha pele e entrando em meu pescoço. Naquela noite eu era a presa. Sentir sua essência sendo sugada mostra que no fundo de um poço sem vida existe uma vontade de continuar, sim, ela me mostrou isso quando me deixou ali jogado ao chão sem conseguir me mexer, somente um fio me separava da verdadeira morte, e isso, isso mudou tudo. A besta não mais dominava meu corpo, era como se aquele sangue que foi sugado de mim tivesse levado a minha maldição junto com ele. Nunca mais a vi mas sempre ouvi lendas de um imortal sugando sangue de outros, sempre contos sobre uma mulher de olhar frio e sedutor, sempre nas ruelas de cidades infestadas.
A besta me deixou mas um preço foi exigido, a noite se tornou maior, a solidão ficou tangível e eu podia sentir meu peito rasgar em sofrimento e apodrecer ao sinal de abandono, a fera era o que mascarava meu ser, ela trazia um animal a tona e trancava o lado humano. Liberar o meu ser do destino de matar irracionalmente trouxe ao mundo um ser deteriorado com sentimentos errôneos e mal traduzidos que matava e sentia remorso, algo ruim para alguém que está sozinho durante séculos. Por décadas vaguei, embriagado de sangue inocente, sentindo meu peito chorar por meus atos, lembrando do olhar de cada vitima e da luz que se apagava em seu ser. Me enchia de culpa mas não parava. Não me sobrou mais nada além de esperar a noite terminar e assim poder ver o sol nascer novamente, apenas uma vez, a última vez, sim, sentir o calor do colo novamente...
As marcas deixadas pelos anos, a vastidão do ser e a dor de uma vida solitária talvez acompanhem sua existência como acompanham a minha, mas tenha em mente que mesmo um sentimento ruim é um sentimento e que estar preso a uma máscara pode te cegar ao ponto de se tornar mais animal do que homem, mais fera do que ser. Não jogue pás de mentiras em cima do que você é, não cubra uma emoção com um pano fino e nunca deixe de sentir sua essência
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Parece que tudo não passou de um sonho, estranho dizer isso afinal não sonhamos. Sua presença em minha vida me fez sentir algo que a muito estava esquecido, algo que eu pensava já ter morrido como o resto do meu corpo. A calma e turbulenta sensação, o calor que queimava em mim como um raio de sol.
Por muitos séculos vivi preso em um espelho. A vida passava para mim, como passava o vento pela colina, era rápida, os anos não eram sentidos por meu corpo, mas mudava tudo dentro de mim. A escolha de sentir ou não era algo que temíamos quando jovens, mas que nos permitia viver quando muito velhos. Depois de séculos vendo o mundo se afundando em dor e a solidão me consumindo decidi que era hora de me tornar a besta, todos chegamos a essa decisão em certo ponto. A besta é algo que carregamos dentro de nós imortais, não se pode controlar este impulso de matar, de não sentir, de ser apenas o animal que nos tornamos, na verdade não devo chamar de animal, eles não merecem que nos comparemos. Ao assumir a personalidade da besta você vê a noite de outra perspectiva, não é mais um antro de solidão, é um parque de diversões, cheio de oportunidades e prazeres. Confesso, fiz coisas horrendas, experimentei de tudo que trouxesse prazer, e no fim descobri que certas pessoas podem ser muito mais bestas do que qualquer um de nós. Humanos que se libertam das correntes da moral, descobrem um novo mundo.
Acho que devo começar pelo começo, como posso dizer, foi uma noite como qualquer outra, o sol estava quase raiando e eu precisava voltar ao meu esconderijo, em um beco vejo uma mulher encolhida em um canto, as mãos cheias de sangue se misturando com as lágrimas que corriam de seu rosto. A cena me deixou intrigado. Fui até ela e perguntei qual era o problema, não houve resposta, seus olhos estavam fixos em um canto do beco. Um cadáver. Ela havia matado um homem de meia idade, cabelos brancos, aparentava ser um magnata.
_e...ee...eee...eu...mat...maatar.... Balbuciou.
_Humanos morrem, às vezes por motivos coerentes, às vezes simplesmente morrem. Alguns merecem esse destino, não se culpe. Disse a ela.
Não houve resposta. Eu não tinha o costume de ser simpático, em outro dia ela já teria sido morta.
_eeele...tentou...me...tentou...pegar...ajuda... Disse sussurrando ao meu ouvido enquanto encostava a cabeça em meu peito.
Senti algo, um frio na barriga, era estranho, há muito tempo não sentia algo do tipo se é que já senti antes. Ela me abraçou, forte, as lágrimas não paravam de descer. Não tive reação.
_você pode vingar ele? E me matar? Disse enquanto limpava as lágrimas e sorria para mim.
Eu não consegui dizer nada, mas dentro de mim ainda havia o instinto daquela besta. Comecei a não ouvir o ambiente, meu coração batia aceleradamente, e o cheiro do sangue da garota ficava cada vez mais forte. Não tive como evitar, eu jamais mataria uma pessoa naquele estado. Foi forte. Quando recobrei a consciência, minhas presas já estavam em seu pescoço e sua vida já estava por um fio, e naquele último momento algo me parou...
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Washington da Silva Pacheco. Tecnologia do Blogger.