Parece que tudo não passou de um sonho, estranho dizer isso
afinal não sonhamos. Sua presença em minha vida me fez sentir algo que a muito
estava esquecido, algo que eu pensava já ter morrido como o resto do meu corpo.
A calma e turbulenta sensação, o calor que queimava em mim como um raio de sol.
Por muitos séculos vivi preso em um espelho. A vida passava
para mim, como passava o vento pela colina, era rápida, os anos não eram
sentidos por meu corpo, mas mudava tudo dentro de mim. A escolha de sentir ou
não era algo que temíamos quando jovens, mas que nos permitia viver quando
muito velhos. Depois de séculos vendo o mundo se afundando em dor e a solidão
me consumindo decidi que era hora de me tornar a besta, todos chegamos a essa
decisão em certo ponto. A besta é algo que carregamos dentro de nós imortais, não
se pode controlar este impulso de matar, de não sentir, de ser apenas o animal
que nos tornamos, na verdade não devo chamar de animal, eles não merecem que
nos comparemos. Ao assumir a personalidade da besta você vê a noite de outra
perspectiva, não é mais um antro de solidão, é um parque de diversões, cheio de
oportunidades e prazeres. Confesso, fiz coisas horrendas, experimentei de tudo
que trouxesse prazer, e no fim descobri que certas pessoas podem ser muito mais
bestas do que qualquer um de nós. Humanos que se libertam das correntes da
moral, descobrem um novo mundo.
Acho que devo começar pelo começo, como posso dizer, foi uma
noite como qualquer outra, o sol estava quase raiando e eu precisava voltar ao
meu esconderijo, em um beco vejo uma mulher encolhida em um canto, as mãos
cheias de sangue se misturando com as lágrimas que corriam de seu rosto. A cena
me deixou intrigado. Fui até ela e perguntei qual era o problema, não houve
resposta, seus olhos estavam fixos em um canto do beco. Um cadáver. Ela havia
matado um homem de meia idade, cabelos brancos, aparentava ser um magnata.
_e...ee...eee...eu...mat...maatar.... Balbuciou.
_Humanos morrem, às vezes por motivos coerentes, às vezes
simplesmente morrem. Alguns merecem esse destino, não se culpe. Disse a ela.
Não houve resposta. Eu não tinha o costume de ser simpático,
em outro dia ela já teria sido morta.
_eeele...tentou...me...tentou...pegar...ajuda... Disse sussurrando
ao meu ouvido enquanto encostava a cabeça em meu peito.
Senti algo, um frio na barriga, era estranho, há muito tempo
não sentia algo do tipo se é que já senti antes. Ela me abraçou, forte, as
lágrimas não paravam de descer. Não tive reação.
_você pode vingar ele? E me matar? Disse enquanto limpava as
lágrimas e sorria para mim.
Eu não consegui dizer nada, mas dentro de mim ainda havia o
instinto daquela besta. Comecei a não ouvir o ambiente, meu coração batia aceleradamente,
e o cheiro do sangue da garota ficava cada vez mais forte. Não tive como
evitar, eu jamais mataria uma pessoa naquele estado. Foi forte. Quando recobrei
a consciência, minhas presas já estavam em seu pescoço e sua vida já estava por
um fio, e naquele último momento algo me parou...